Os Deuses do Metal desceram do Olimpo e o público português foi abençoado com a sua virtude num dos melhores momentos musicais de 2018.
Na hora do adeus, Ozzy Osbourne desfilou clássicos que marcam não só a sua carreira como, directa e indirectamente, todo o imaginário da música pesada.
O claro entusiasmo do frontman e a capacidade vocal, pontos acima do que muitos previam, aumentou a par e passo o entusiasmo dos presentes que há muito aguardavam pelo cumprimento da promessa lançada em 2002, aquando do Ozzfest no estádio do Restelo.
Um acerto de contas, com juros incluídos, que fez lucrar uma Altice Arena repleta e rendida ao Príncipe das Trevas.
A noite começou relativamente cedo na maior arena de concertos do país. Pelas 20h já Rob Halford e companhia subiam novamente ao palco que os recebeu em 2005, 2009 (com Megadeth e Testament) e 2011, sempre na qualidade de headliner.
Judas Priest pertencem ao clube de elite que pode afirmar sem receios o seu estatuto na evolução do Metal enquanto género musical. Dizer que estiveram no cargo de aquecer as hostes seria omitir e minimizar mais um grande concerto da histórica banda no nosso país.
Com uma setlist equiparável em quantidade, os ícones do Heavy Metal comportaram-se mais como um Co-Headliner do que outra coisa, para grande benefício do elevado número de fãs que aguardavam dentro do recinto: a produção, o show de luzes, a parafernália de palco... nada lhes fora negligenciado. Longe do que normalmente verificamos em bandas de abertura.
Com "Firepower", single forte do fresquinho album homónimo, abriram um concerto que, tal como o posterior, soube a pouco... culpa do extenso catálogo que foram construindo durante décadas.
Rob Halford continua um senhor em palco, no elevado sentido da palavra, e ao longo de quinze temas desfilou a sua capacidade vocal invejável.
Aos 66 anos o "metal god" não se dá ao luxo de se comportar como um Bruce Dickinson mas a sua sobriedade de movimentos é apenas outra forma de dar ênfase ao timbre alto que sempre encaixou naqueles "twin atacks", outrora de KK Downing e Glenn Tipton e agora de Faulkner e Sneap (que encaixam que nem uma luva).
De qualquer forma, longe de estático, o vocalista percorreu o palco ao som de álbuns plenos de relevância (obrigatórios numa boa colecção de discos) e de British Steel saiu logo um coelho da cartola com "Grinder" a arrancar os primeiros coros na plateia.
Passagens pelos velhinhos Sad Wings of Destiny, Sin After Sin e pelo muito aclamado Screaming for Vengeance, já do seu capítulo mais mediático nos anos 80, iam sendo do agrado de todos mas foi "Turbo Lover" o ponto de viragem entre o concerto assistido e o concerto vivido. Não só porque o tema em si é muito mais orelhudo, com laivos de pop rock até, o que torna tudo mais acessível a todos, mas também porque a recta final foi feita de hinos de estádio com refrões decorados pela grande maioria dos presentes.
Pousadas as air guitars usadas em "Freewheel Burning", "You've Got Another Thing Coming" e "Hell Bent for Leather" voltaram a demonstrar o porquê de serem daquelas obrigatórias. Claro que não faltou a Harley Davidson em palco.
Como o pano de fundo já fazia indicar, "Painkiller" foi lançada com aviso prévio mas sem que tal diminuísse o impacto da mesma. Um dos melhores temas da história do Metal poderá ser algo subjectivo mas certamente partilhado por muitos dos que ontem estiveram presentes no Altice Arena.
O encore foi feito de "Metal Gods" e "Breaking the Law" com uma agradável visita de Glenn Tipton que atravessa agora um dos maiores desafios da sua vida.
Aplaudidos de pé, os Judas Priest partiram com uma promessa projectada na tela de fundo... the Priest will be back again...
A forma extremamente competente dos Britânicos nos entreterem, com a sua própria lição de história, comprovou-se pela boa disposição que se vivia no recinto durante mais de três quartos de hora entre concertos.
O público, maioritariamente numa faixa etária superior aos 40, demonstrou-se multi-geracional e proveniente de vários países distintos... depois de vender mais de 100 milhões de cópias e diversas tours mundiais não foi algo que nos surpreendesse de todo.
De recordar que nós próprios, SFTD Radio, rumámos ao Reino Unido para assistirmos a um dos derradeiros concertos de Black Sabbath.
Quando as luzes se apagaram, nos dois ecrãs instalados nas laterais do palco surgiram imagens de uma vida cheia de altos e baixos. Fotografias que nos relembraram a evolução da "personagem" e enfatizaram o sentimento de despedida.
É certo que Ozzy não se desmarca totalmente de fazer algo pontual aqui e ali, mas desta segunda edição de No More Tours surgem poucas dúvidas quanto à veracidade do objectivo da mesma.
O "Madman", igual a si próprio, ao entrar em palco lançou uma das suas famosas frases de apelo à loucura no público e a resposta foi bem para além do Golden Circle.
A sua figura simpática em palco e toda a sua descoordenação motora fizeram arrancar sorrisos por toda a parte mas nem por isso num tom jocoso. Este ano completará 70 anos de vida e é espectacular, não só como ainda presta vassalagem à sua pioneira evolução de rock'n'roll, como parece estar numa fase melhor do que seria de esperar.
Foi isso que constatámos com "Bark at the Moon" logo a abrir para nosso gáudio. Ozzy nunca foi vocalista de técnica acrescida. Nem pouco mais ou menos. Por isso, e alguma simpatia pela própria idade, não privilegiámos esse critério como decisivo. Só se fosse uma questão de poder arruinar a performance num todo, algo que apesar de tudo pode sempre acontecer mas que nem perto esteve de se verificar.
Em Londres, com Black Sabbath, a positiva prestação de Ozzy fora inferior à que os lisboetas assistiram. Com mais energia e com uma vontade de ali estar enorme... um contraste claro com o que se passou esta mesma semana noutro recinto lisboeta.
Zakk Wylde, mesmo abrindo ao som dos riffs de Jake E. Lee, demonstrou logo o porquê de continuar a ser um dos grandes trunfos de ver Ozzy a solo quando este integra a banda.
A sua aura de guitar hero inegável foi um regalo à vista a cada solo que passou.
Até porque neste contexto sempre se contém um pouco mais do que com Black Label Society, em que por vezes peca pelo exagero.
"Mr Crowley", cuja cover os nossos Moonspell incluíram como bónus em Darkness and Hope, continuou a dar resposta ao entusiasmo vivido a cada nota do tema anterior.
"I Don't Know", que tanto arrancou pulos como berros, fez-se seguir pelo primeiro momento Sabbath-iano com Tommy Clufetos a brilhar no papel de Bill Ward: "Fairies Wear Boots" foi um dos três temas retirados da discografia de Black Sabbath, curiosamente todos escolhidos do velhinho Paranoid, e nele teve um dos momentos de maior brilho deste exemplar baterista que acompanhou a reta final da banda de Birmingham.
A outrora polêmica "Suicide Solution", do intemporal Blizzard of Oz, não deixou baixar o nível com o seu riff bad ass de head banging automático.
"Road to Nowhere" antes de "No More Tears", música que dá nome ao que é para muitos o último grande álbum da carreira de Osbourne, fecharam uma primeira metade feita de clássicos.
Não que a segunda não o fosse, até porque não existe maior clássico que "War Pigs"... simplesmente a forma como se geriram os esforços em palco alteraram-se.
Os famosos riffs de Iommi fizeram estremecer o chão e pela quantidade de telemóveis no ar, o bilhete estaria pago com aquele momento apenas. Um hino da história da música que fora para muitos, finalmente, a primeira vez que puderam escutar ao vivo. Certamente um momento a reter na memória e colorido pela descida de Zakk Wylde ao fosso onde demonstrou os seus incríveis dotes quer tocando com os dentes como atrás das costas.
Este solo prolongou-se com passagens entre registos discográficos mais obscuros da "fase Zakk", originando alguma crítica por parte do público menos dado a estes momentos.
Seguiu-se um, também ele fantástico e irrepreensível, solo de bateria e entretanto o nosso anfitrião estava reposto para atacar "I Don't Wanna Change the World", "Shot in the Dark" e a inevitável "Crazy Train".
All aboard!!!... O eterno riff de Randy Rhodes obteve as melhores reacções da noite com o público bem solto, no ponto que muitas bandas ambicionam um dia poderem ter perante o palco.
O encore trouxe-nos a ternura de "Mama I'm Coming Home" e a apoteose de "Paranoid" numa despedida que não precisou de ser verbalizada para ser sentida.
A carreira de Ozzy Osbourne é inegavelmente incrível: é certo que grande parte do segredo passou pela sua capacidade, e também de Sharon Osbourne, de se saber rodear com excelentes músicos. No entanto, o seu nome estará sempre ligado a hinos intemporais.
Da sua discografia, a solo e com Black Sabbath, podemos listar facilmente uns 6 ou 7 álbuns (no mínimo) como mais influentes da música pesada.
A sua vida, cheia de excessos, literalmente deu um Reality Show e nem sempre a benefício da sua credibilidade pessoal. No entanto o julgamento do tempo ditou uma sentença amena e perdulária. O Ozzy é hoje o nosso avô excêntrico, que temos de aceitar como família. E relembro que foi esta a família que escolhemos e que este é um dos patriarcas.
Despedirmo-nos de alguém tão omnipresente naquilo que ouvimos diariamente, que é também uma paixão, não deixa de trazer uma certa melancolia mas o Principe das Trevas fê-lo em tom de festa e será esse o registo que quem lá esteve certamente irá guardar na memória e contar aos netos no futuro.
Texto: Tiago Queirós
Fotos: Everything is New / Nuno Conceição
Agradecimentos: Everything is New