Os Anathema vão regressar a Portugal para a apresentação do seu último álbum Weather Systems nos próximos dias 19 e 20 de Outubro no Hard Club no Porto e no Paradise Garage em Lisboa. Aproveitámos então este momento para fazer uma entrevista de fundo ao teclista Daniel Cardoso que integra a formação dos Anathema nesta digressão.
Songs For The Deaf Radio: Como tudo começou e o que te fez ingressar no mundo da música?
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Daniel Cardoso |
Daniel Cardoso: Começou com um miúdo teimoso que percebia a música de forma diferente. Curiosamente nunca teve como objectivo ingressar no mundo da música (usando as tuas palavras), principalmente porque isso foi durante muito tempo uma espécie de sonho inalcançável, ou pelo menos era essa a opinião das pessoas que foram influentes para mim durante o meu crescimento como pessoa e músico. Mas lá está, eu era um miúdo teimoso. E ainda sou. Dizerem-me que algo ia ser difícil era o melhor catalisador para eu efectivamente tentar e correr o risco de errar antes de desistir. Acho que pelo menos segui o caminho daquilo que sei ter sido sempre a minha vocação.
SFTD Radio: Para além de músico és também compositor e produtor. Destas actividades quais te dão mais prazer?
D.C.: Está tudo extremamente diluído em mim hoje em dia. Não só pela necessidade de subsistência mas também por um misto de gosto e hábito. Se fizer uma boa auto-análise do assunto, acho que pertenço aos palcos, sou um exibicionista e tenho aquele orgulho narcisista de me imaginar a ser visto pelos olhos do público. Mas se passo muito tempo na estrada sinto falta do trabalho semi-criativo e localizado de uma boa produção em estúdio, ou do trabalho totalmente criativo e intimista de estar em casa ao piano a compor um tema ou um álbum. Não vale a pena descrever as diferenças, acho que qualquer pessoa que quiser ler esta entrevista já as sabe à partida. Mas no meu caso complementam-se totalmente. Nunca poderia ser simplesmente um performer nem simplesmente um compositor. Tenho a vantagem e a maldição de poder ser efectivamente as três coisas.
SFTD Radio: Como designarias o género das tuas composições musicais?
D.C.: Os anos e a necessidade acabaram por me tornar o mais versátil possível. Actualmente consigo dar mais de mim numa produção que namore ali um bocadinho com o pop/ rock do que com o metal. Por consequência do meu excesso de trabalho dos últimos anos opto por não ouvir metal em casa. Produzi ou envolvi-me com tantas bandas de metal que acho que já nada me surpreende no género. Se quiser ouvir música para fins recreativos, gosto de coisas calmas. No fundo sou um gajo duro que precisa de encontrar alguma paz na música que ouve.
SFTD Radio: Para que tipo de bandas compões, e que relações estabeleces com as bandas?
D.C.: Que tenha qualidade, bom gosto, budget e estofo para suportar as minhas manias e a forma agressiva como às vezes defendo as minhas ideias. Não é para todos, felizmente.
SFTD Radio: Quando e como surgiu a ideia de abrir a Ultrasoundstudios?
D.C.: Quando começou a haver clientes que o justificassem. O meu investimento inicial foi feito unicamente para garantir as condições necessárias a que eu fizesse a minha música com qualidade suficiente para não depender de ninguém. No caminho acabei por me envolver na música dos outros e começou a dar-se o fenómeno bola de neve. Comecei a ter muitas propostas de trabalho para produções e a certa altura justificou-se um estúdio, até porque era um sonho de adolescente. Mas é um erro investir num estúdio hoje em dia. A indústria está retraída. Actualmente os USS estão franchisados a dois corajosos gerentes. Isso quer dizer que eu sou o dono da marca UltraSoundStudios mas os estúdios têm gestão independente desde que sigam as directrizes da marca. É uma espécie de McDonalds a uma escala microscópica e sem cheeseburguers.
SFTD Radio: A Ultrasoundstudios tem tido o feedback pretendido?
D.C.: Teve mais que o esperado durante alguns anos. Agora serve para os seus gerentes pagarem as contas e sobreviverem. Ninguém está a enriquecer ou a fazer dinheiro com isso.
SFTD Radio: Como consegues conciliar tudo, tens alguma estratégia?
D.C.: Nem por isso, vou conciliando. Sou muito "seize the day". Não costumo falhar em deadlines mas também não sou o melhor em termos de organização de horários e de calendário. Tenho a vantagem de me poder compensar com um time-off sempre que me apetecer e acho que é assim que funciono, por auto-compensação. Se o trabalho me correu bem num dia, posso tirar o dia seguinte para ver filmes, séries e ir a um bom restaurante jantar com os Slamo.
SFTD Radio: Tens mais algum projecto na manga?
D.C.: Tenho. O meu cérebro não pára e isso tem tanto de bom como de mau. Mas tenho alguns projectos megalómanos que duvido que alguma vez consiga convencer alguém a financiá-los. Sou o tipo de pessoa que se ganhar o euro milhões ainda vai acabar por fazer mais e trabalhar mais do que antes. Mas parar é morrer, sempre se disse por aí.
SFTD Radio: Parece que em Portugal és menos reconhecido que no estrangeiro, porque achas que isso acontece?
D.C.: O estrangeiro é um bocadinho maior que Portugal, portanto é normal que assim seja. Mas acho que individualmente não há muitos países em que tenha sido mais reconhecido do que em Portugal. Criei a minha carreira sempre de forma ligeiramente marginal portanto é normal que não ande nas bocas da imprensa nacional, mas dentro do meio musical nacional muita gente conhece o meu nome e suponho que tenham algum respeito por ele, coisa que agradeço. O que nunca tive em Portugal foi ter artistas locais de certo calibre a investirem em mim e a confiarem no meu trabalho como artistas de certo calibre de outros países já o fizeram.
SFTD Radio: O que achas que é necessário para mudar essa situação?
D.C.: Nada de especial. Se calhar não tem que mudar. Nunca me esforcei por procurar atenção no meu país. Sinceramente nunca me esforcei para procurar atenção em lado nenhum. As coisas são como são. Eu limito-me a fazer o meu trabalho o melhor possível e agarrar as oportunidades que me vão aparecendo. Nunca forcei o meu trabalho a ninguém nem nunca impingi o meu trabalho a ninguém. Eu simplesmente sigo o meu caminho e vou-me deixando assediar por pessoas que precisam da minha ajuda para seguir o caminho delas, musicalmente falando.
SFTD Radio: Sentes que é mais favorável teres o reconhecimento do público de forma a poderes ser mais valorizado pelo meio musical?
D.C.: Sim, acho importante existir esse reconhecimento, claro. Também sou um artista e um artista para ser artista precisa de algum público, senão é só um louco.
SFTD Radio: Em Novembro de 2010 os Anathema tocaram no Hard Club no Porto e escolheram os Slamo como banda de abertura, o que influiu nessa escolha?
D.C.: Eu na altura já era amigo da banda. Os Anathema perguntaram-me por uma banda local para fazer as primeiras partes em Portugal e Espanha, e os Slamo estavam à procura de concertos. Limitei-me a mostrar Slamo aos membros da banda encarregues de decidir qual seria a banda de abertura para esses concertos. Toda a gente gostou de Slamo e os Slamo gostaram ainda mais de fazer essas datas de abertura.
SFTD Radio: Sei que tocas vários instrumentos, e que tens tocado essencialmente teclas com os Anathema, mas tens alguma preferência?
D.C.: Em palco prefiro tocar bateria dez milhões de vezes. Tocar teclas não tem piada. Não me consigo exprimir fisicamente, não consigo dizer para mim mesmo "hoje vou partir isto tudo", e isso é importante para mim como performer. Sei que o meu papel em Anathema é importante e necessário. Mas sinceramente se comparar ser teclista em palco com ser baterista, odeio ser teclista. É mesmo aborrecido.
SFTD Radio: Já trabalhaste ou trabalhas com várias bandas, entre elas os Ramp, Heavenwood, SiriuS, Slamo, etc, que projectos tens actualmente?
D.C.: Trabalhei recentemente com Ramp em estúdio, fiz a mistura do próximo trabalho da banda. SiriuS acabou em 2002 ou 2003 acho eu. Heavenwood são uma boa banda que decidiu desligar-se de mim. Slamo são provavelmente os meus melhores amigos no meio musical. Acho que estamos amaldiçoados a não conseguir fazer música porque quando nos juntamos só queremos bons jantares, bons vinhos e vida boémia. O Tobel, vocalista de Slamo, quando ler isto vai já telefonar-me a mandar vir comigo e a dizer que temos é que ensaiar e fazer música. O que faz sentido tendo em conta que ele é efectivamente das pessoas mais talentosas que conheço. A maior dificuldade está em acertarmos as agulhas e a disponibilidade de ambos. No dia em que o universo se alinhar dessa forma, somos capazes de fazer um par de álbuns históricos.
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Anathema no Vagos Open Air 2011 |
SFTD Radio: No
Vagos Open Air 2011 tocaste pela primeira vez em Portugal com os
Anathema, qual foi a sensação?
D.C.: Senti vergonha. Toquei com Anathema em países daqueles aos quais gostamos de chamar de terceiro-mundistas e nunca houve problemas técnicos ao nível dos que tivemos em Vagos. Toda a gente faz questão em todo o lado de proporcionar as melhores condições possíveis à banda. Depois chegamos ao meu país, num festival que comporta uma meia dúzia de milhar de pessoas e temos um gerador a falhar 3 ou 4 vezes durante uma actuação.
SFTD Radio: Como contornaram esses problemas técnicos?
D.C.: A banda teve muita paciência e boa postura, são boas pessoas e pensaram no público e nos fãs. Eu sinceramente senti vergonha. Sou o elemento mais novo na banda e não me cabe a mim ter algum tipo de postura decisiva. Mas se estivesse numa posição de liderança na banda provavelmente tinha feito alguma asneira tipo partir uma guitarra ou duas, na melhor das hipóteses. No fundo sei que a organização não agiu de má fé, mas custa-me um bocado que isto tivesse que acontecer no meu país. Parecemos uns totós que não sabem que tipo de amperagem ou de potência precisam para um gerador de um festival, ainda por cima um festival repetente.
SFTD Radio: Sentiste receptividade por parte do público português ou achas que essa receptividade tem sido mais intensa noutros países?
D.C.: Senti que a banda é bem recebida em Portugal, mas nunca ao nível de outros países. Os sul-americanos e os italianos são imbatíveis. Os iranianos também o são, e ainda estão sujeitos à prova de esforço extra de não poderem ver a banda no seu próprio país por causa da castração artística do governo local. Mas isso não os demove de terem que se deslocar aos mais variados países para nos verem. Concerto sim concerto não, há uma comitiva extremamente entusiasta vinda do Irão.
SFTD Radio: Até hoje qual foi o teu concerto favorito com os Anathema?
D.C.: Não sei bem, mas aquele que mais gostei foi na Tunísia, porque o John Douglas estava de férias e estava eu na bateria, hehe.
SFTD Radio: Desde Setembro estás em tour com os Anathema, como tem corrido?
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Daniel Cardoso (foto : Caroline Traitler) |
D.C.: A tour está a correr bastante bem apesar de alguns percalços. Abrimos com um concerto na Bulgária para a gravação do DVD oficial ao vivo. Foi um projecto megalómano, com a direcção artística do realizador dinamarquês
Lasse Hoile. Foi num anfiteatro romano com uma orquestra de 36 elementos. Entretanto ao terceiro concerto perdemos o nosso técnico de som (curiosamente um português, embora residente em UK) por motivos familiares. Passado uma semana perdemos o nosso tour manager devido a problemas na empresa dele que o levaram a ter que abandonar a tour para garantir a subsistência da empresa. Mas foram feitas as devidas substituições e continuou tudo a rolar. Os shows têm sido muito bons, quase sempre esgotados e com um público incrivelmente dedicado
SFTD Radio: Quais são os teus objectivos para o futuro?
D.C.: Ganhar mais dinheiro e trabalhar menos. Não só porque estou a ficar velho mas também porque gostava de trabalhar mais por gosto e menos por necessidade de pagar as contas. Idealmente deveria ter só 2 ou 3 clientes muito bons e muito ricos por ano. Produzia 2 ou 3 best sellers, era bem pago e toda a gente ficava contente. Infelizmente a conjuntura económica do país e a realidade da indústria musical dão aos meus objectivos um contorno consideravelmente utópico. Mas que se lixe, não deixa de ser o ideal e vou trabalhar para isso.
SFTD Radio: Que conselho darias a alguém que tem vontade para entrar no mundo da música?
D.C.: Entrar conscientemente no mundo da música com sonhos de ter uma carreira artística hoje em dia só não é um erro se for feito por alguém com um talento muito acima da média ou com um trabalho extremamente inovador (ambos num plano comparativo à escala mundial), se for alguém com capacidade financeira e vontade de perder dinheiro ou ainda se for alguém com muito boas cunhas, embora isso raramente resulte a longo prazo se não houver talento. A música como profissão é um mau investimento. Não vale a pena espalharem emails com as tabelas sindicalizadas de cachets de músicos porque isso não é realista nos tempos em que vivemos. Também não vale a pena espalharem posts no facebook a dizer "se és músico não toques à borla" porque isso ainda é menos realista. Se queres crescer num meio extremamente competitivo e saturado como este, toca à borla. Toca à borla 3, 4 ou 20 vezes e mostra que és o melhor. Ainda há espaço, oportunidades e dinheiro para os melhores. Eu toquei muitas vezes à borla e agora anos mais tarde vou chegar a Portugal com uns milhares de euros no bolso por estar dois meses em tour com uma banda estrangeira de quem era fã quando tinha 15 anos e tocava à borla. Esse tocar à borla chama-se promoção. Mas só resulta se tiveres realmente um bom trabalho e qualidade para promover. Caso contrário estás no ramo errado, e podes continuar a estar, nada contra. Não podes é exigir que te paguem. Lamento.